A literatura permite algo único. Viver outro corpo, outra mente, sentir lugares, tocar objetos, ter relações que nunca tivemos. Nos permite mergulhar na mente de um fanático, nos bocejos de um promotor corrupto ou destroçar um cadáver à procura de um fio de ouro que caiu na última refeição do defunto. Podemos pensar tal como seres inexistentes que habitam lugares irreais e falam línguas que deveriam ser bizarras mas que, por mais que nos esforcemos, ainda soam tão humanas.
Hoje os céus têm limites, as chuvas podem ser previstas, mistérios são desmanchados, a natureza dominada, mas a nossa mente permanece, desde o começo do ser humano, com o inabalável poder de ir sempre além. A literatura, que é uma expressão tão intimista, que nega o contato direto com o público, nos permite explorar os nossos limites pessoais sabendo que ainda estamos longe das suas fronteiras ao entrarmos no íntimo de seres imaginários que poderiam ser reais. Os limites da literatura, na verdade, são os limites do autor e do leitor, da nossa pobreza, da miséria do mundo.
Pessoas movidas por intensa religiosidade sempre me fascinaram, em especial aqueles desconhecidos que ao invés de serem chamados profetas são apenas loucos. Fiquei imaginando como seria entrar na mente de uma delas. Comecei aos poucos. Esse messias que se formava em minha cabeça havia sofrido um trauma; uma operação no cérebro contra sua vontade (lobotomia, implante de eletrodos, operação contra epilepsia... isso deixei para o leitor imaginar):
Natanael ainda se lembrava da operação. A luz forte contra os seus olhos, a agulha da anestesia atravessando a pele, a sonolência, agonia, e, sobretudo, incompreensão.
Não sabia por que estava lá, por que foi tirado da clínica de tratamento, quem eram aquelas pessoas e o que faziam. A última lembrança antes da operação foi de entrar na clínica. Colocaram-no em um quarto, estava cansado, queria dormir apesar de ser dia. Ao lado da cama, dois médicos o esperavam. Deveria ter achado estranho, mas não, provavelmente tinha sido drogado, só queria dormir. Os médicos o levaram até a cama, os sons das vozes deles estavam embaralhados, sem sentido. Ouvia as palavras mas não entendia o significado. Eles o acomodaram na cama, podia jurar que sentiu um deles colocando a mão sobre o seu ombro de maneira fraternal. Então, sentiu como se estivesse revivendo a sua infância, as noites em que a mãe, quando estava sóbria, lhe contava estórias.
Em seguida, flashes. Ainda estava deitado, mas sendo empurrado na maca através do corredor. As luzes eram fortes e tudo era branco. Vozes vinham de todos os lados, barulhos de máquinas, bips, mas nenhuma palavra era dirigida a ele.
Agulhas eram injetadas em suas veias, sentia vontade de vomitar, mas os músculos comprimiam sua garganta. Mais uma injeção e veio a escuridão. A anestesia paralisou todos os sentidos, mas por pouco tempo. Quando estava no meio da operação, abriu os olhos. Pelo reflexo no metal dos aparelhos, viu uma abertura no seu crânio, viu parte da massa encefálica.
‘O paciente acordou!’ Disse a enfermeira.
‘Aplique mais anestesia! Falei para manter controle dos...’
Tentou falar, mover-se, mas se sentia em um sonho. A anestesia voltou a fazer efeito, mas apenas parcialmente. Enquanto tinha os olhos fechados, ouvia o som metálico dos instrumentos da operação raspando contra o seu crânio, a respiração dos médicos, o próprio coração batendo devagar. Queria chorar, implorar que parassem, fazer os sons sumirem, mas estava preso em seu próprio corpo. Era como ser enterrado vivo. A única diferença era que não podia nem mesmo gritar.
Depois da agonia, veio a luz. Paz! Esta era a única palavra capaz de explicar o que sentia. Tudo parecia perfeito. Aquele foi o momento em que sua vida mudou por completo. Natanael morreu, Messias nasceu. Um novo ser no mesmo corpo.
Desenvolvo mais esta estória no meu livro Conexões. O fascínio pela possibilidade de entrar nas mentes mais estranhas só aumenta. Imagino que muitos sintam o mesmo, e por que não tentar? Escrever e imaginar são atividades que certamente só vão enriquecer a sua vida, em especial em um daqueles momentos entediantes esperando o ônibus, metro, uma outra pessoal, ou quando estamos presos no engarrafamento ou simplesmente quando a vida parece tão monótona. Outro tema que me fascina é entrar na mente de um guerrilheiro. Como ele vê a floresta/deserto/cidade ao seu redor? O que o motiva a se sacrificar, a suportar a chuva, sol, dias sem comida e esquecer completamente os mais simples confortos? Qual vontade o move, que como essa vontade se torna tão forte?
À FRENTE DO MUNDO
Erza Pound dizia que os poetas são “as antenas da sociedade”. Ou seja, são aqueles que primeiro captam as mudanças, que, assim como os insetos, prevêem uma tempestade ou seca antes que os céus apresentem os seus indícios. E por que não dizer que os escritores de uma forma geral são as antenas da sociedade? Ou ainda, por que não dizer que o ato de escrever (seja feito por um profissional ou não) é uma criação que vai além da simples expressão do pensamento?
Qualquer um que já pegou uma caneta e desafiou o papel, ou enfrentou a tela fria e os teclados duros de um computador, deve ter percebido que o ato de escrever não é uma reprodução exata do pensamento. Algumas vezes escrever é uma vergonhosa incapacidade de expressar o que queremos, mas por outras nos leva a criar algo que mal sabíamos existir dentro de nós.
O filósofo grego Sócrates ficou famoso pela frase “Só sei que nada sei”. Para chegar a essa conclusão, ele indagou vários sábios do seu tempo, entre eles um poeta cuja obra continha versos profundos e complexos. Ansioso por encontrar a fonte do conhecimento, Sócrates perguntou o significado de alguns versos. O poeta, um tanto constrangido, respondeu que não sabia explicar o que ele próprio havia escrito, aquilo surgira de uma forma espontânea, no próprio ato da criação.
As obras de Shakespeare são tão ricas que até hoje muitos pesquisadores tentam negar que ele foi filho de um comerciante numa vila provinciana da Inglaterra. Para pessoas céticas assim, seria impossível explicar que alguns dos maiores poetas brasileiros (como Patativa do Assaré e Cego Aderaldo) eram semi-analfabetos. A poesia deles era parte da vida, retinha toda a riqueza da língua falada e suas variantes. O conhecimento deles, assim como o do poeta de grego, não vinha de uma educação formal, mas das suas experiências, sensações e memórias, e eram trazidas à tona pela escrita (ou recitação).
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