terça-feira, 28 de junho de 2011

O Poder da Ficção

A literatura permite viver outro corpo, outra mente, sentir lugares extintos, tocar objetos irreais, ter relações que nunca tivemos. Nos permite mergulhar na mente de um fanático, nos bocejos de um promotor corrupto ou destroçar um cadáver a procura de um fio de ouro que caiu na última refeição do defunto. Podemos pensar como seres inexistentes que falam línguas que deveriam ser bizarras mas que, por mais que nos esforcemos, ainda soam tão humanas.

Hoje os céus têm limites, as chuvas podem ser previstas, mistérios são desmanchados, a natureza dominada, mas a nossa mente permanece, desde o começo do ser humano, com o inabalável poder de ir sempre além. A literatura, que é uma expressão tão intimista, onde o autor prescinde do contato direto com o público, nos permite explorar os nossos limites pessoais. Os limites da literatura, na verdade, são os limites do autor e do leitor, da nossa pobreza, da miséria do mundo.

Fiquei imaginando como seria entrar na mente de uma outra pessoa. Mas uma pessoa comum, que tivesse, como todos nós, alguma lembrança que a marcou. Chamei essa experiência de:

Livro dos Mortos do Antigo Egito

Eu só vi um cadáver em minha vida. Do corpo borrado nas ferragens do acidente na estrada só lembro da blusa de lã azul. Há alguns dias, no entanto, assisti à morte de um amigo. Não foi o seu corpo morto, mas a sua morte. O corpo é o refugo da vida, o óleo que se estagna nas engrenagens enquanto o fluxo desliza sobre elas. Encarar um cadáver é questão de hábito. Para um agente funerário ele é o que uma massa é para o pizzaiolo, uma alface para o agricultor. Se não percebêssemos o cheiro, as marcas, a cor da pele, a respiração, como distinguiríamos o morto daquele que dorme?

Assistir a morte é acompanhar as angústias, medos, dúvidas, inspirações e emoções da certeza do fim. Ninguém estava com ele, só eu. Ignoro porquê, nunca fomos tão íntimos. Dentre todos os familiares e amigos, por que fui a única que continuou ao lado dele? Foi a morte, negando tudo, que criou os nossos laços de amizade, e não a vida com suas banalidades.

Um dia passando apressada pela rua vi aquele livro. Porque o comprei (nunca leio) não sei, mas o coloquei na bolsa e fui ao hospital. Durante o caminho pensei em dar a ele. Chegando no quarto me envergonhei em ter imaginado dar para alguém naquela situação um livro escrito ao longo de 3 ou 4 milênios atrás, que se confunde com esoterismo, auto-ajuda, ocultismo... Minha razão repudiou meu primeiro pensamento em dar o livro a ele, mas uma parte de mim, meio inconsciente, cruelmente o quis ver sofrer. Somos assim, repletos de maldade. Então, logo que cheguei no quarto deixei a minha bolsa cair. Isso nunca acontece comigo. E pior foi ter, quando pegando a bolsa no chão, deixado o livro cair de dentro dela. Sou uma pessoa extremamente cuidadosa. Ter deixado o livro cair no meio do chão foi algo da parte cruel da minha personalidade (“o inconsciente”). Acho que comprei o livro só para ridicularizar o meu amigo. Era uma forma de puni-lo por estar fazendo com que eu perdesse algumas horas da minha semana indo ao hospital. Coisas que a gente pensa mas prefere fingir que não pensamos.

Ele adorava livros. Assim que o viu, esticou a mão em direção a ele. O entreguei sem uma palavra. Ele olhou com curiosidade, logo com perplexidade. Eu me senti envergonhada. Disse “tchau” novamente e sai. No outro dia ele estava morto... não, assim seria uma daquelas novelas sentimentais. Dois dias depois voltei. Ele estava numa situação deplorável. Sentia muita a falta de alguém. Quando me viu, seu rosto se transformou, parecia ter tomado uma dose de insulina ou qualquer coisa assim. Me abraçou chorando de alegria. Depois de 2 dias alguém que se preocupava com ele estava ali novamente. Esqueci o livro. Decidi que iria vê-lo todos os dias, até que um de nós morresse. Era o mínimo que eu deveria a um ser humano como eu.

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